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Acidente em Shopping Center com Funcionária de Loja: A Ampliação da Proteção Consumerista

A recente decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial nº 2.080.225/SP, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, reacende um debate importante sobre a extensão da proteção consumerista em ambientes complexos como os shopping centers.

Criado em: 29/03/2025 23:41:26


O caso em questão envolveu uma funcionária de uma loja que sofreu um acidente (uma queda no banheiro) dentro do shopping durante seu horário de trabalho, levantando a crucial questão de se essa relação poderia ser enquadrada como de consumo. A resposta da Terceira Turma do STJ, ao dar provimento ao recurso, é um marco que merece atenção e análise.

RECURSO ESPECIAL. CONSUMIDOR. CONSUMIDOR. TEORIA FINALISTA. FUNCIONÁRIA DE LOJA EM SHOPPING CENTER. ACIDENTE EM ÁREA COMUM. BANHEIRO. LESÃO GRAVE. RELAÇÃO DE CONSUMO. CARACTERIZAÇÃO. ACIDENTE EM HORÁRIO DE TRABALHO. IRRELEVÂNCIA. DENUNCIAÇÃO À LIDE. IMPOSSIBILIDADE.

1. Ação indenizatória ajuizada em 6/3/2018, do qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 9/2/2022 e concluso ao gabinete em 25/4/2023.

2. O propósito recursal consiste em dizer se: a) o fato de a vítima ser funcionária de loja de shopping center e ter sofrido acidente durante o horário de trabalho em área de uso comum (banheiro) afasta a aplicação do CDC; e b) era admissível, na hipótese dos autos, a denunciação à lide da sociedade empresária responsável pela limpeza e manutenção do local do acidente.

3. A determinação da qualidade de consumidor deve, em regra, ser feita mediante aplicação da teoria finalista, que, numa exegese restritiva do art. 2º do CDC, considera destinatário final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço, seja ele pessoa física ou jurídica.

4. Os shoppings centers são empreendimentos prestadores de serviço consistente na colocação à disposição dos clientes de ambiente seguro que reúne, em um único local, uma multiplicidade de fornecedores, tais como lojas, restaurantes e supermercados, com o objetivo de atrair consumidores em virtude da facilidade de acesso a produtos e serviços.

5. Ao acessar o ambiente disponibilizado pelo shopping center, o cliente passa a desfrutar, direta ou indiretamente, do serviço prestado, ainda que não adquira novos produtos ou serviços no local, estando caracterizada, portanto, a relação de consumo.

6. Ao entrar no shopping center, assim como qualquer outro cliente, a funcionária de loja localizada em seu interior estabelece com a referida pessoa jurídica uma verdadeira relação de consumo, porquanto presentes todos os seus requisitos configuradores, nos termos dos arts. 2º e 3º, do CDC.

7. O fato de a vítima ser funcionária de loja de shopping center e ter sofrido acidente durante o horário de trabalho em área de uso comum (banheiro) não afasta a aplicação do CDC.

8. Eventual infração trabalhista decorrente da utilização do horário de trabalho para a prática de atividade estranha ao ofício, diz respeito, exclusivamente, à relação jurídica de emprego entabulada entre a parte autora e seu empregador, o que deve ser apurado em ação própria, não integrando o objeto do presente recurso.

9. É firme a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que em se tratando de relação de consumo, descabe a denunciação à lide, nos termos do art. 88 do CDC. Precedentes.

10. Na hipótese dos autos, merece reforma o acórdão recorrido, pois configurada a relação de consumo, devendo ser afastada a denunciação à lide, impondo-se o retorno dos autos à Corte de origem para que prossiga no julgamento dos recursos de apelação interpostos por ambas as partes, apreciando as teses recursais que restaram prejudicadas, como entender de direito.

11. Recurso especial provido.

(REsp n. 2.080.225/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 10/10/2023.)

Tradicionalmente, a definição de consumidor no Código de Defesa do Consumidor (CDC) é balizada pela teoria finalista, que restringe essa figura àquele que adquire ou utiliza o produto ou serviço como destinatário final, seja ele fático (o último a usar) ou econômico (aquele que não o reinserirá na sua cadeia produtiva). No entanto, a dinâmica dos shopping centers, verdadeiros ecossistemas comerciais, desafia essa interpretação estrita.

O STJ, sensível a essa realidade, tem adotado uma visão mais abrangente, reconhecendo o shopping center como um prestador de serviços que oferece um ambiente seguro e conveniente, reunindo uma vasta gama de fornecedores. Ao adentrar esse espaço, qualquer indivíduo, seja para compras, lazer ou mesmo a trabalho, passa a usufruir, direta ou indiretamente, desses serviços. A facilidade de acesso, a segurança (ou a expectativa dela) e a variedade de opções são atrativos que o shopping center oferece ao público, configurando, portanto, uma relação de consumo lato sensu.

A grande inovação e relevância da decisão reside em estender essa proteção à funcionária da loja. O argumento de que o acidente ocorreu durante o horário de trabalho e em uma área comum poderia, em uma análise superficial, afastar a aplicação do CDC, direcionando a questão para a esfera trabalhista. Contudo, o STJ sabiamente desvinculou as esferas. A eventual infração trabalhista por utilizar o tempo de serviço para fins pessoais é uma questão entre empregada e empregador. Já a responsabilidade do shopping center pela segurança de suas instalações, incluindo as áreas comuns, transcende a relação de trabalho e atinge todos aqueles que circulam em seu interior.

Ao reconhecer a funcionária como consumidora nesse contexto específico, o STJ reforça o dever de cuidado e segurança que o shopping center possui para com todos os frequentadores, independentemente do seu propósito de entrada. A falha na manutenção ou a negligência que levaram ao acidente geram, portanto, a responsabilidade civil do empreendimento perante a vítima, nos moldes do CDC.

Outro ponto crucial da decisão foi a reafirmação da impossibilidade de denunciação à lide em relações de consumo, conforme o artigo 88 do CDC. O shopping center, na qualidade de fornecedor, não pode transferir sua responsabilidade direta ao consumidor, chamando ao processo a empresa responsável pela limpeza e manutenção. Essa vedação visa proteger o consumidor, evitando que o processo se torne mais complexo e demorado, dificultando a reparação dos danos sofridos.

A decisão do STJ é um avanço importante na interpretação do CDC, demonstrando a adaptabilidade do direito consumerista às novas realidades e relações sociais. Ela sinaliza que a proteção ao consumidor não se limita ao ato da compra em si, mas abrange a segurança e a qualidade dos serviços oferecidos em ambientes comerciais complexos.

Para os shopping centers, essa decisão serve como um alerta para a necessidade de redobrar a atenção com a manutenção e a segurança de todas as suas áreas, incluindo aquelas de uso comum. A responsabilidade não se restringe aos clientes que efetuam compras, mas se estende a todos que, de alguma forma, utilizam o espaço oferecido.

Em suma, a decisão do STJ no REsp nº 2.080.225/SP é um passo significativo na ampliação da proteção consumerista, reconhecendo a vulnerabilidade de indivíduos em ambientes comerciais complexos e reforçando a responsabilidade dos fornecedores em garantir a segurança e o bem-estar de todos que circulam em suas dependências. Essa nova perspectiva certamente influenciará futuros casos e contribuirá para um ambiente de consumo mais seguro e justo.